NÃO TENHO MEDO DE VOCÊ
Com os dedos amarelados, minha cara se enfiava entre os joelhos— o sol nas minhas costas e bochecha esquerda, eu juro que estou sonhando. Esses dias, estava ao lado de uma grande amiga e sua câmera, três andares de risos sinceros— ela me ensinou o caminho até a sua casa, e agora posso ir dos livros para os seus braços com facilidade. Acabei afundando em uma cadeira de couro falso, no meu cinema predileto. A protagonista do filme era mais quieta que o meu próprio silêncio, que levo com orgulho entre os dentes. Cabelo quase sujo, alma limpa, carne judiada— tudo que eu queria era ir para casa. Tudo que eu queria era ir para casa. Tudo que eu mais almejo neste mundo é a minha casa, e eu nunca sei se isso significa o útero que me faz ou a cama que eu durmo, não sei muito a diferença entre ambos, de qualquer forma. Só reconheço o meu começo e meio, jamais o paradeiro de todas essas palavras. Constantemente visito os portões das memórias, esperando que alguém saiba o meu nome, esperando que se eu entrar o chão será o mesmo, esperando a tapeçaria chinesa na sala de jantar, e meu avô no jardim com o jornal em mãos. Espero que eles lembrem de mim, e me convidem para tomar um chá. Algo nosso jamais saiu daquelas casas, mas vendemos as chaves dez anos atrás— o melhor que posso fazer é observar minhas lembranças desfocadas e curtas do outro lado da rua, me sentar na mesma praça que ia passar as tardes quando era pequena, ler o que quer que o Murakami tenha a dizer sobre sonhos, paredes, morte e a vida. Assistir o sol queimar meus ombros, brincar com cachorros que não conheço, tomar um sorvete e me surpreender pelos olhares de espanto na livraria— alguém sabe quem eu sou, que engraçado. Sempre tive medo do reflexo, sempre esqueço que sou feita de matéria orgânica, e que os outros podem me ver. Normalmente, observo tudo de longe, no absoluto silêncio. O que ultimamente anda sendo preenchido e constantemente morto por risadas sinceras.
Quando falo que não quero sair de casa, é por estar faminta por um abraço, por um pedaço esquecido— esqueci grande parte da minha vida, é como se os anos fossem feitos de rasgos remendados por telas em branco. O breu me persegue, e eu juro que algo nele é o culpado pelas noites em claro. Mas como ser algo além de um aglomerado de desejos e necessidades? Escrevi algo sobre isso esses dias, mas ainda não posso te falar sobre isso. Tudo que temos, tudo que eu quero que você pense sobre neste exato segundo é a imagem de uma possibilidade de futuro, com uma xícara de chá nas mãos e uma figueira crescendo na sua mesa. Sonhei que minha mãe teria me presenteado com um ramo de figos— como se figos vivessem feito uvas, o que achei engraçado, mas a visão era bonita. O que ela me deu naquele vaso era mais do que a minha fruta predileta eternizada em minhas mãos, o que ela me entregou com um sorriso no rosto foi o fruto do meu futuro— uma pequena lembrança/ “por favor não se esqueça de mim quando for embora”, eu jamais poderia ir embora se isso significasse esquecer a minha memória mais vívida, mais ardente, mais genuína. Eu preciso ir para casa, sabe, está ficando tarde, mas não sei ir embora de seus braços. Nós tecemos como casulos de esperança, por um breve segundo isso tudo é genuíno. Deixe que o silêncio tome conta de nós por um breve segundo.
Às vezes, esqueço que com o meu trabalho surgem olhos curiosos, pessoas que vão memorizar os meus cachos da mesma forma que eu eternizei as palavras de minhas poetas prediletas no meu braço esquerdo (assim, elas sempre guiam as minhas palavras, assim estamos menos sós, e elas podem morrer de velhice nesta vida.), o que é engraçado, nunca imaginei que em uma cidade com tantas pessoas chamativas os meus vestidos rendados e meias coloridas fossem tão reconhecíveis— existem outras milhares assim como eu, e não sei se sou tão mais merecedora do teu amor do que elas são, mas quando os seus olhos encontram os meus, e quando as minhas mãos encontram o seu rosto... eu não tenho medo de mais nada. Todo o incerto não me atormenta, e todas as minhas premonições sobre o tempo somem com o vento. Os ipês são mais lindos e mais eternos do que o peso da sua morte, o nosso elo de palavras é mais forte do que aqueles dias em que passei com * debaixo da lua, fazendo tudo que fizemos. Acho que tudo ocorre no tempo certo mesmo, pois tenho menos desgosto pelo fato de que a minha alma está acolhida por carne/ músculos/ pele— de que observam, de que conhecem a minha voz, de que lembram do meu nome— de que as minhas memórias não saibam quem eu sou, de que eu saiba que parte disso é culpa minha, mas que tudo isso eu devo a eles e todos os nomes entre nós— a distância sagrada que carregamos nas veias.
Lembro de cada pedaço seu, mas lembro muito mais das casas que passamos os dias no pula-pula e as noites escondidas debaixo da pia do cisne dourado, são os poucos detalhes que brilham, os que eram muito bem limpos por almas que sinto falta de verdade— as almas que eu queria que lembrassem da minha. A fome seria muito maior se não nos encolhêssemos naquela cozinha ao lado dos cachorros grandes, a minha vergonha seria muito maior se suas palavras não fossem tão gentis. Às vezes, me esqueço que o tempo muda tudo, e que as minhas lembranças mais vivas não me conhecem e que os estranhos no mercado sabem muito mais sobre os meus livros do que esses pequenos brilhantes nas nossas palmas. Mas isso não dói mais, pois estou debaixo do sol, queimando as bochechas e tudo que habita dentro de minhas costelas ao lado dos maiores amores da minha vida, da minha memória mais importante— a que ainda vive, a que abraça e beija. Aquelas que têm riso, voz, nome, olhos que eu conheço de longe. Estou em casa quando lembro de que tenho tudo isso nas mãos— completa, saciada, para dizer no mínimo. Toda a morte que veio nos últimos anos foi arrancada de meu reflexo, agora olho para o espelho, olho para este corpo, rosto— olho para essas palavras, e observo as flores se abrindo e eu sei que não tenho mais medo de você, ou do que fomos, ou como fizemos isso ser uma ferida aberta— o que quer que sangre não é meu. Eu não tenho medo de você pois não falamos nada sobre quem somos, eu não te reconheceria em esquinas alheias e você jamais saberia pronunciar o meu nome e assimilar a um corpo tão cheio de vida, tão cheio de casa— eu não tenho medo de você.



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