UM MINUTO DE SILÊNCIO/ UMA ODE AS MUSAS SEPULTAS

RENOIR Auguste,1881-82 - Pêches - Detail 03




Viramos fugitivos no momento que descobrimos que essa é a forma mais fácil de lidar com o luto. Crescer é engraçado, sempre vai ter algo dentro de nós que se assemelha com quem éramos pequenininhos— e ainda somos minúsculos comparados com outras pessoas com idades mais sérias, vidas mais concretas. Isso não nos conta muito sobre eles, na verdade só fala de nós mesmos. No final do ano passado eu tinha feito a promessa de passar este aniversário em algum lugar longe de casa— existe algo na sensação de ser intocável/ estar fora do alcance que sempre me faz aceitar absolutamente tudo e qualquer coisa para poder tê-la novamente. Eu fugi para Buenos Aires e voltei para São Paulo sem uma musa. Chorei debaixo do chuveiro de bronze e flertei em espanhol com garçons no píer. Pintei as unhas de vermelho e esperei pelo sinal de fumaça— tudo morreu e renasceu e agora existe um vazio reconfortante entre o nada e o amanhã. Peço um minuto de silêncio pelas musas que estão morrendo, e peço que segurem tuas almas entre os seus próprios dedos. Não dê espaço para aquelas que estão por vir— enquanto existir o silêncio elas ainda estão vivas. Por favor, se me vir perto do lago não fale comigo. Encoste seus pensamentos em meus ombros e assista os cines dormindo do outro lado. Quietos, feito uma homenagem para um amanhã incerto. Não pela idade, mas pelos olhos desconhecidos prestes a se tornarem tudo que iremos procurar em cômodos alheios. Um minuto de silêncio para as musas sepultadas, por favor. Se você olhar de perto, os corredores entre os museus são como os mapeados nos cemitérios— a cada curva você encontra um rosto novo, alguém talvez amado, alguém talvez. Cada quadro falsamente dedicado aos olhos eternizados por tinta a óleo. Todos sabemos que se você olhar no fundo dos olhos de cada musa você poderá ver um pedaço d’alma do pintor.

O medo vêm da certeza de que nunca mais seremos tão estupidamente esperançosos e jovens de novo— não da mesma forma. O quão mais velha eu fico, mais distante nos tornamos— eu pedi por uma última palavra, mas acho que suas cartas de perderam no caminho. Então, agarre aquele minuto de silêncio, por favor. Um minuto, apenas um minuto de silêncio pois é tudo que ainda temos para celebrar. Não sei escrever se não for sobre a fome ou sobre amor— ando saciada, de certa forma. Mas não existe um par de olhos ao meu redor para amar—, todas as minhas musas morreram pouco a pouco. Tudo que nos resta é o silêncio e a certeza de que um dia seremos mais velhos, mais serenos e certos de que tudo que é finito será exatamente o que sempre foi— passageiro.





Andei passando incontáveis tardes na sala dedicada a Renoir no MASP novo— observando cada alma, e ouvindo cada comentário. Como será estar do outro lado da pintura? Como será a sensação de ser eternizada e envernizada para sempre. Estar exposta e disposta para qualquer um passar, olhar, julgar, rir— as vezes, bem no fundo eu queria saber como é não ser o artista uma só vez. Dizem que drena a sua alma e te cospe seca, mas, e se o artista se mover em silêncio? E se suas musas nunca souberem disso? Talvez a relação entre os artistas e suas obsessões sejam sempre diferentes do resto. O mundo boêmio já respira em outro tempo, vive em quinas opostas e usa marcas que nunca foram pronunciadas em público— mas a musa é uma pessoa comum, amena, pacata. Como é que temos a coragem de fazer isso com elas? Como será que Renoir se sentia ao pintar todas aquelas meninas? Como será que elas se sentiram sendo julgadas pelo seu peso nos dias de hoje? Entre os bancos no meio da sala e a escadaria você pode ouvir senhores rindo de suas (das musas) posturas. Como o seu corpo imóvel tinha sido capturado, ou, como seus olhos imploravam por algo. Se você perguntar a mim eu te diria que elas estão implorando por amor. Não estou falando sobre sexo. Pele sob pele, olhos engolindo olhos— estou falando de levantar cedo e poder encostar nossas xícaras de chá na pia. O mal do artista é nunca poder se saciar— jamais seremos uma ode, ou mesmo os nossos trabalhos. Sempre estamos falando do mundo, e nunca de nós mesmos.

Por favor, um minuto de silêncio pela falta da sua ausência e a abundância das tuas palavras mortas. Um mero minuto antes que você se torne uma pessoa de verdade— carne/ossos/sangue/olhos. O segundo antes deste avião pousar era tudo que restava de você. Quem é você quando não está performando no outro lado do oceano? Quem é você quando é humano? Acho que estou ficando velha o suficiente para deixar de ser a minha idade, e acho que isso te cansa um pouco. Somos velhos, mas a diferença é que você está morrendo. Eu ainda tenho tempo para encontrar outros olhos para tomar como se fossem a minha casa. Nunca foi sobre o amor, mas certamente foi pela fome. E o silêncio que nos conta irá reverbera por décadas, ou, enquanto ainda existirem poemas a serem publicados sobre o charme e a fama do desejo de ser intocável.

Quando cheguei em casa foi como um salto no tempo— abandonei todos os meus livros, pinturas e souvenirs aos dezoito anos e aos dezenove tudo permanece intacto. Não tenho motivos para esfolar meu corpo debaixo d’água quente— estou limpa por completo de todas as musas que me fizeram poeta. Agora existe um vazio amargo, um lugar conhecido e reconfortante. Perto de minhas canetas e longe de minha datilográfica. Existe uma esperança em tudo isso, sabe? Algo concreto, algo meu. Minhas próximas tatuagens serão minhas enquanto o tempo não arrancar elas de mim. Este é o mais perto que cheguei de ser uma musa. Eu peço então, por favor, um minuto de silêncio para as musas sepultadas & para aquelas que foram abandonadas por serem pele/cor/cheiro/gosto. Um minuto de silêncio para as almas das musas sepultadas.

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