UMA MURALHA DE LIVROS

 



Você fala como alguém que tem que pular de um precipício” — foi o que ele me disse anos atrás quando eu ainda estava mostrando pequenos escritos que um dia viraram A Besta Siamesa. Ele era apenas um rosto, um amor de verão, talvez. Mas aquelas palavras fincaram na minha alma. Tudo no mundo era tão sereno três anos atrás— os poemas eram densos, toda palavra soava como a última. O que você faz depois de conseguir o que você mais queria? Para onde anda? Mudo de roupa? Continuo afogando todos os meus meios de comunicação com as mesmas palavras? O que tem no fundo deste precipício? Talvez, éramos apenas dramáticos, mas eu jurava que dentro dos seus olhos tinha alguma coisa que ninguém jamais poderia me mostrar de novo. Naquele quarto, naquelas palavras, naqueles poemas que nunca saíram de nossas bocas— existia alguma coisa muito viva dentro de duas almas decadentes.  Acordei com a imensa vontade de viver— acho que o quanto menos eu devoto os meus dias a amar um futuro incerto mais eu flerto com a vida. A levo para dançar, e no final do dia damos as mãos e voltamos para a cama. Apoio minhas mãos nas suas bochechas fantasmagóricas apoiadas em meus travesseiros—, esse quarto é o menor que eu já tive, mas é sem dúvida alguma o mais confortável. A vida sangra entre os móveis, a vida se apoia nas pilhas de livros. Ela olha nos meus olhos e eu tento encontrar alguém que jamais saberia o nome desta rua. O que será que tem no fundo dessa queda? O que será que encontramos quando nossos ossos se estatelam? Foi isso que me fez escrever este mesmo livro, e agora eu vivo tudo que eu sonhava viver quando tinha medo de pular deste precipício, e não por mim, ou pela dor— pela minha mãe. Pela minha linhagem. Tudo iria se estatelar com estes mesmos ossos no final da queda deste precipício.


O que quer que isso signifique para você, mas acho que existe uma metáfora entre nós, e você está no outro lado dela, olhando no fundo dos meus olhos— eles não sabem procurar por uma alma, eles só degustam memórias. Existe alguma coisa que nos afasta e nos trás de volta a essa mesma rua de duas vias. No final da rua existe uma casa, e é claro, o precipício misterioso que pode nos salvar ou condenar— nada é suave, nunca. Não ultimamente, não. Vivemos entre o mar morto e o olho do furacão, não há escapatória. Acho que você nunca quis que essa frase ficasse comigo, e eu acho que se frustrou quando precisei de palavras alheias, as suas já não me causavam euforia— outros poetas, mais mortos que nós, porém mais sérios do que somos e seremos—, tem um mundo inteiro no final desta queda, sabia? E eu acho que você detesta que eu queira pular. Você jamais despencaria com os braços abertos e os olhos vendados. Você assiste os corpos caindo, você vive ancorado na beira e jura que um dia eles irão declarar uma paixão pela vida no topo das nuvens. Agora, você entende? Existe algum tipo de metáfora entre nós dois— eu não sou louca, eu juro. Existe alguma coisa queimando no meio destas frases, e existe alguma coisa muito estranha e sem nome atrás de seus olhos. Acho que nunca conheci a sua alma, e acho que você nunca quis conhecer a minha. Hoje em dia eu tenho tudo que sonhamos por todas aquelas noites em claro e eu queria ter menos medo de apertar botões imaginários em uma tela de computador.

Fiz escolhas permanentes e acho que estaria orgulhoso de mim— li um recado qualquer, um que foi provavelmente programado para aparecer, mas isso não importa— eu preciso aprender a pular deste precipício. Acho que passei tempo demais vendo isso como uma ode à morte e esqueci da vida que existe no final de tudo isso. Acho que eu era séria demais, e você continua o mesmo. Mesmos olhos, mesma opacidade, mesmo corte de cabelo— você saiu daquela casa? No final do dia, acho que se nos vermos novamente nunca saberíamos distinguir a diferença entre um estranho qualquer e um talvez algo grandioso.Ando escrevendo um livro novo e eu acho que você iria odiar ele, enfim. Acho que eu preciso ir. Por favor, não faça essa cara. Não, não, não! Isso não é justo. Eu preciso pular deste precipício e eu preciso fazer coisas que eu jamais me atreveria fazer quando trancava a vida para fora da janela— o Sol gritava o meu nome e eu fechava os olhos esperando pelo silêncio perpétuo.

Build a wall of books betweenus in our bed/ Repeat, repeat the words that I know we both said/ Relax intothe need/ We get so comfortable / Remember when I was so strange and likeable?


Um dia antes de publicar o meu livro eu acordei e senti a maior angústia que meu corpo pode sentir desde aquele pesadelo em forma de promessa. Sentada ao lado de minha mãe, observando a espuma escorrendo pelo seu carro ela me perguntou algo genuíno e pela primeira vez na vida eu quis que alguém me conhecesse. Aqueles segundos em silêncio pareceram durar anos— e anos se passaram e as palavras se acumulando entre as páginas trancadas a sete chaves em baús diversos. Eu usei frases que não falavam muito sobre mim, ou mesmo sobre ninguém— mas a água derramou sob nossas cabeças e tudo que estava ao nosso redor parecia um sonho lúcido. Pela primeira vez eu quis falar sobre quem andei escrevendo alguns dos meus melhores poemas e queria falar sobre nomes alheios que viessem na minha cabeça. E pela primeira vez na vida eu liguei uma câmera e assumi quem eu sou. Mas eu nunca vou publicar aquele vídeo, pois “pela última vez me vejo moça, túlio. Pela última vez.”. Se eu falasse isso, você saberia exatamente o que quero dizer. E eu escrevi. Cada palavra, corte e cicatriz. E agora queria saber como é a vida não só na metade do caminho de minha queda— eu quero saber como é se estatelar onde os olhos não alcançam lá no topo do precipício. Quero deixá-la orgulhosa e você frustrado. Escrevi um livro, sabia? E aparentemente andam gostando das minhas palavras. Existem passos a serem dados e pontos a serem reajustados e eu juro que penso que este livro será o resto da minha vida— mas o que importa agora é que existem metáforas que não se encaixam nessas linhas e eu não preciso mais fugir. Você nunca iria me encontrar de qualquer forma, e as ondas cantam a língua das costas que elas beijam. O mar chama o meu nome, mas eu finco meus pés neste mesmo píer. Existe alguma coisa entre as nossas almas que eu não quero ouvir falar mais sobre. Existe uma vida inteira neste mesmo lado do paraíso que você nega com todo o seu âmago. Existe uma alma por completo por trás de cada palavra daquele mesmo livro que eu escrevi, mas você jamais saberia disso— cada sílaba tem uma alma e cada nome naquelas páginas não foi à toa. Precisamos viver para saber escrever sobre aquilo.

No dia após A Besta Siamesa virar não só minha, mas de quem quiser comprá-la senti um enorme alívio. Tudo aquilo que guardava no peito tinha sido expelido. Meus ossos ainda são a sua casa, mas esses contos, essa história não é mais o meu grande segredo— quando me sentar nos bares escuros nas ruas boêmias da cidade, quando olhares estranhos se reconhecerem por meros segundos— tudo aquilo que falarmos terá um peso diferente. Nossos olhos serão mais velhos, menos extremos, menos mortos. Um dia, irei pintar quadros na sala deste mesmo estranho enquanto escuto histórias sobre o verão de 2015, ou mesmo, o nosso próprio silêncio vai soar mais sincero, menos estranho. Tudo fica mais leve quando você assume em quatro línguas. No dia após o nascimento oficial da minha criatura de duas cabeças nenhum vento sussurrou seu nome, ou mesmo um novo destino/uma nova fuga— olhe ao redor disso tudo, estamos exatamente onde deveríamos estar. Ainda existe um vão que sangra entre nós, mas não cabe a mim te salvar do inevitável— não cabe a ti me impedir de pular ou de ficar neste mesmo morro dos ventos cortantes. Cabe a nós apreciarmos o silêncio do agora, e devorar tudo aquilo que virá existir— nos tornar e sentir os ruídos entre as nossas veias. Não, não poderíamos continuar sendo desta mesma maneira para sempre.

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