OSSOS DA SORTE
Debaixo das luzes vermelhas de um dos únicos cantos de São Paulo que honra o nome da cidade que não dorme. Sempre voltamos aqui, com os braços trançados— somos um tipo de promessa calada que tenho a certeza de que jamais irá desmanchar. Hoje sou totalmente oposta a tudo que deixei eles tocarem, que alívio. Tudo que se senta ao lado de meus amigos é honesto. De braços descuidados a braços incertos— agora, nos meus próprios, é como se nada tivesse mudado de verdade. Não perdemos nada, pois não ganhamos nada com sonhos líquidos. Então tenho todo o amor do mundo para dar aos meus amigos em um final de tarde qualquer nos bares mais clássicos da cidade. Andei tropeçando de dia em dia, de bar em bar. De olhos em olhos, até achar você. “O meu prazer jamais será a minha doença”, foi o que rabisquei em minha caderneta enquanto voltava para casa após mais uma noite que passamos nossos hábitos, segredos e olhos entre nossas mãos. Fomos honestas com todos, incluindo nós mesmas— entre as histórias, e até as nossas risadas tinham um tom de segurança que jurava ser uma arte perdida.
Ter agarrado todas as oportunidades com as mãos e dentes foi a maior das mudanças que nos fez virar algo que jamais souberam que poderia existir. Sem palavras coreografadas ou conversas editadas. Todos os nossos erros e toda a nossa glória exposta para todas as outras almas observarem debaixo da luz vermelha. O mais lindo de tudo isso é que poder ser sem medo nos leva aos abraços mais seguros de todos— mesmo ao acordar sozinha, o silêncio canta em uma língua que falo fluentemente. Que alívio, todos os seus sussurros foram sepultados. Que alívio, a vista do outro lado deste como está completamente limpa. Toda aquela vergonha de ser que sugava a vida foi embora. Você nunca mais vai ouvir a minha voz se direcionando aos seus olhos. Descobri que existe muitas coisas valiosas demais nesse lado do paraíso para serem jogadas fora, existe vida, vida pura— a que rasteja para todos os cantos, sem tempo escorrendo de seu corpo. Sem bile. Sem tortura. Vida, existe vida genuína entre as nossas palavras e maneirismo. Que sorte a nossa, não? De fazer parte de tudo isso. De ser o mais puro reflexo das noites que prometemos para os olhos ao nosso lado— olhos que acompanham rostos, nomes, e a certeza de que nos veremos novamente. Mindinhos entrelaçados, eu confio em você.
Existe um pequeno par de ossos em formato de um
‘y’ que se quebrarmos podemos fazer um desejo. Andei colecionando ossos da
sorte caso fosse necessário, e esta semana quebrei cada um deles repetindo as mesmas
palavras. Não existe algo mais assustador do que não confiar em si mesmo, e as
vezes rituais que vem da esperança de ficarmos com o pedaço da sorte entre os
nossos dedos é tudo que temos. Recentemente, te falei sobre penhascos, e como
eles são assustadores— quando decidimos ficar. E, quando seguimos em frente, e,
tudo aquilo que conhecíamos fica em cima deste precipício? Que alívio. Todos os
nossos desejos são feitos para nós mesmos, que alívio poder respirar os últimos
suspiros de um inverno gentil— nunca mais seremos os mesmos, e eu amo isso. Posso
ter crescido, e me desapegado de hábitos, mas, se tem uma coisa que jamais irá
escorrer de meus ossos é o êxtase de se saber estrangeira na sua própria vida. Um
ângulo novo dentro da mesma cidade. Todos aqueles desejos em silêncio funcionaram.
E agora, estamos entre risadas confusas e copos maiores que nossas cabeças, —
talvez seja a luz avermelhada, ou o que seremos depois disso tudo, mas são
esses os momentos que nos trazem vida.
Ao chegar em casa, com a barriga cheia e a
visão turva, encontrei o meu mais novo conforto. Fui arrancando um por um, até
o meu diário virar uma carcaça de couro vegetal. Não existia página sequer
naquelas cadernetas que não estivesse completamente cheia de memórias— isso dói
menos do que deveria, sabe? Trancar todas ela longe da minha visão. Permitir
que tudo aquilo vire uma grande névoa até o dia em que me lembrar de empacotá-los.
Até o dia que essa casa não for mais onde eu volte para no começo das manhãs—,
quantas mais vezes irei lembrar dessas memórias? Quantas mais vezes irei tocar
nelas até virarem apenas papel? Se eu pudesse ter mais um par de ossos em mãos
esse seria o meu desejo final; parar de esquecer sobre tudo que fomos. Meu
último desejo foi em vão— eu sei que sobrenomes não tem o peso que eles juravam
que tinham, e eu sei dirigir. A minha vida por completo, assim como o meu nome
me pertence. Se não tivesse tomado riscos eu jamais saberia. E agora todas as
páginas em branco estão esperando pelo fim do meu voto de silêncio— me prometi
que até as aulas voltarem nada seria dito, nada seria memorável o suficiente
para sair de minhas cadernetas diárias que misturam palavras com rabiscos. Toda
a dor que sentimos por arrumar a nossa postura diante de uma roda de conversa
não foi completamente em vão. Para correr precisávamos saber do que é que precisamos
fugir, e para onde iriamos. E você sabe, quando o sol se derrama no trópico de
capricórnio a vida toma cores que não nos ensinaram, e isso é frustrante, pois
pagamos com as nossas almas por aqueles nomes em nossos diplomas. Mas nada mais
importa, pois as luzes vermelhas sangram na nossa pele, e beijamos uma as outras
sem medo de sermos vistas. Pois queremos, imploramos para que saibam quem
somos. Esse teria sido um dos ossos quebrados que me trouxeram até aqui. Pois o
meu prazer não é a minha doença, e o nosso maneirismo boêmio jamais seria a
nossa mania. Somos bichos da selva de concreto que nunca dorme— somos a arte
que sangramos. Somos tudo aquilo que tentaram esconder com um mero nome. Pegue um pedaço destes ossos com as duas mãos
e faça um pedido— prometo que irei guardá-lo entre os dentes.



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