FATA MORGANA

título original:

(decidi sumir/não me procure)


Eu preciso tocar em alma, mas minhas mãos se grudam no desumano. Não faço sentido, faz meses que não sinto muito orgulho na minha desordem — meus olhos atados as luzes vermelhas da cidade feito uma mariposa kamikaze. Derretendo no submundo de nossa glória — seria este o limbo? Me pergunto, mas não tenho tempo para pensamentos espirais desprendidos. Sinto o cheiro de shampoo e suco industrializado de remexendo na ventania da escada, e pude quase sentir alguma coisa. Despenquei dos céus e voltei as ondas — sempre submersa, de uma forma ou de outra. O mar me arranca as palavras e me exige o sono, eu sinto muito, mas não sei fazer algo além de seguir a voz do oceano. De costas para a correria, as vezes é uma benção se encontrar sozinha no meio da estação a noite — olhos na esperança artificial que se deitam acima de nós, rios correm e não tenho como negar os soluços. A paz atormenta quando me conta sobre você. Sabe, talvez a mais complexa de todas as facetas que nos observa é a mesma que segura a nossa alma. Sozinha por pura opção, no silêncio inquieto da minha mente que cria pequenas frases mirabolantes que se perdem entre faróis e ventanias. Eu amo o barulho, eu amo os olhos alheios e os conhecidos que corro para abraçar no meio da rua, mas não posso evitar em ser uma pessoa sazonal. Da mesma forma que imploro por amor, eu também imploro por solitude. Deixei de usar a palavra ‘solidão’ aos dezessete anos de idade, quando senti que era melhor acolher os poemas de Sexton como religião. Sempre religiosa, acima de espiritualizada — tradições de todos os tipos percorrem por mim. E a solidão é religiosa, e ainda sonho em me isolar por semanas dentro de um cômodo escuro até ouvir A voz. E derramar entre ondas jamais te deixaria na mesma costa — você jamais pararia nos mesmos braços, ou mesmo nos seus próprios. 

Saio de casa para apoiar meus pensamentos em ombros gentis e esquecer as minhas palavras entre as suas. A vida é linda quando se tem algo para se segurar, e você sabe muito bem que eu não consigo tirar meus olhos das luzes vermelhas entre as estações. Não sei sair daqueles corredores debaixo da terra. Todos os dias, nos mesmos vagões, nas mesmas rotas— todos os dias como aqueles quatro meses em que sonhei apenas com trens. Deveria saber que um sonho recorrente não é um sinal positivo. Mas, pelo menos agora estou acordada, e a solitude é mais confortável do que um silêncio estrangeiro. Entre ventanias e gotas de chuva afiadas eu decidi sumir. Até meu cabelo chegar na minha cintura, e ele nunca esteve tão perto— eu nunca estive tão perto de conseguir algo que eu quero—, até eu me sentir madura o suficiente para poder te olhar com respeito, mas nunca mais com admiração. Um mês ou talvez quatro invernos — até as flores voltarem a ser simplesmente flores e a primavera não me lembrar que existe vida em ti. Que olhos piscam, que suas mãos irão envelhecer e eu não vou mais fazer parte de suas memórias e muito menos de seus segredos. Desaparecer até meus olhos terem novas histórias e um outro corpo para chamar de casa.


Envelhecer é lindo. Se transformar, morrer, e reviver em algo novo e mais sereno me conta sobre como jamais poderia me desapegar dos ponteiros, e me atar as horas como você, que corre contra o relógio e contra o seu medo de um último julgamento. Observei suas olheiras e encontrei o vazio. O cansaço da vida se deita em sua pele de maneira inevitável, mas quem sou eu para decifrar você? Mal lembro de olhos que amei. Olhos quais me casei e me divorciei. Não lembro do tom da sua risada, não posso te descrever com excelência. De qualquer forma, envelhecer, para você, é como uma besta do sétimo círculo dos infernos. Quanto menor, quanto mais fresco e intocável o mais você ama. Que triste. Você perde a beleza das rugas que demonstram que uma fruta está pronta para ser desmembrada por mãos alheias — você perde a vida buscando por ela. Mas não existe profundidade no vazio em branco que você insiste em focar enquanto ignora a vida, enquanto esquece de mim. Decidi desaparecer, pois minhas palavras são para a sua alma e corpo o que livros de Anaïs Nin são para quem não entende a diferença entre o pornográfico e o sensível.

Quanto mais sinto meus olhos cansados pelos dezenove verões e dezenove invernos, mais eu entendo que preciso parar e fazer absolutamente nada além de escrever e lembrar que você nunca entenderá. Existe um poema em árabe qual fala sobre a esperança de amar alguém que fale a língua de sua alma, e eu nunca permiti tal desconforto— sempre corri para mastigar o puro e cuspir os restos na sua língua. E, eles jamais saberiam o que queremos dizer com comer, mas não afundar em culpa. Compreender que somos todos pequenos, digestíveis. Ossos bruscos e carne macia. Que nunca deveria ter sido tão sério, tão eterno e muito menos tingido de manchas de minhas canetas prediletas, deveria saber que algo tinha morrido no dia em que ela explodiu em minhas mãos. Manchando-me do que poderia ser você, fiz uma musa de ti. Tive vontade de falar tudo isso para o senhor que me vendeu minha máquina de escrever — enquanto flertava com as teclas de vidro alemãs de 1930 e ignorava minha visão escurecendo pela falta de ar — queria contar tudo sobre absolutamente tudo para um estranho que apenas me vê quando quero mais tinta ou teclas bonitas para saltitar meus dedos. Queria falar sobre tulipas, primaveras. Queria falar sobre como chorei nos braços de meu melhor amigo na penúltima páscoa enquanto escutava cada palavra que ele falava, mas tudo que queria ouvir era; posso te fazer ótimos martinis se você parar de chorar por amores doentios no meio da rua. — queria falar sobre tudo que iria escrever com minha nova amiga analógica para um completo estranho que nunca gostaria de entender que “desde muito cedo era tarde demais”.


Decidi sumir e ler mais Virginia Woolf, como sempre, Hilda Hilst & Unica Zürn. Decidi, um ano atrás, escrever um poema como uma forma de desculpa metafórica a Mary Shelley pois eu embalei pedaços meus e mandei para quem esqueceria do meu nome e trocaria o meu amor por uma página vazia, um breu esbranquiçado. E foi a melhor decisão que fiz em minha vida, pois passo as noites escutando minha máquina de escrever gritando e a vida acontecendo lá fora. Danço nos braços de minha melhor amiga e releio suas cartas que cheiram a jardins secretos e o verão de doze anos atrás. Agora meu cabelo está maior, e ele está muito perto de ser o que eu dizia sonhar com. Estou muito perto de ser a versão mais viva de mim mesma que nunca acharíamos que seria possível quando tínhamos quatorze anos— deitadas em sua janela rabiscada de branco, com a visão tomada pela fumaça. Somos quase vivas o suficiente para esquecer. Eu estou dormindo e acordando em uma cama nova, mas ainda não onde quero estar, não para sempre. Minhas mãos seguram memórias que valem a pena —, todas as flores, agora secas e as noites embriagadas em que o chão nos engolia e a lua beijava nossas bocas. Todas as cartas que nunca enviei e nunca vou enviar, todas as declarações de uma vida que desejo nunca mais viver— memórias escondidas, e cuidadosamente dobradas três vezes para longe de meu corpo — para sempre em caixas de madeiras, para sempre memorabílias, apenas. Não me procure, eu não te espero. Mas eu te amo, pois você sabe que vejo amor como uma promessa e não como um momento. Não me procure, pois ainda não existo, ainda estou desaparecida e ainda estou buscando o equivalente positivo e esperançoso da repetição religiosa de Plath. Até lá eu estou aqui, quieta, inexistente. Esperando meu cabelo crescer, e, rezando para o meu corpo não cair em cima do seu. Olhar em olhos que conhecia sem medo, pois mortos nem sempre estão debaixo da terra e a vida continua para todos, mesmo quando viramos estranhos por completo. A benção da idade acumulada debaixo de nossos olhos faz com que rostos que eram tudo que conseguíamos ver virem apenas estranhos. Não procuro por aquilo que não sei, e eu não te conheço. Que benção. Limpa, por completo. Ainda existem muitas coisas a serem feitas, mas estou quase viva o suficiente, e até lá, meus olhos estarão entrelaçados as esperanças pintadas de vermelho acima de nossos olhos— a tristeza me puxa para debaixo d’agua, mas eu nado bem. Não existe tristeza fatal em um corpo finito feito de tinta. Moldada dos poemas do mundano— não existe tristeza fatal que irá tirar a vida do poeta, da mesma forma que esperávamos por séculos. Quase viva o suficiente para te dizer que não tem motivos palpáveis para temer as ondas.

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