A PRIMAVERA É UMA BESTA. INVERNO, POR FAVOR, NÃO SE VÁ.
Todas as escritoras que mais amo se corroeram
aos poucos até o fim. Todas morreram de formas voluntárias e silenciosas. Tudo
que puderam ouvir foram os zumbidos após as folhas de jornais ainda quentes se atirarem em
suas portas da mesma forma que elas. Um corpo estatelado e mudo na frente de
cada um deles— tudo que importa é que isso vende. Um escritor costuma vender
mais livros após sua morte do que ainda está vivo. Van Gogh vendeu apenas um quadro
quando ainda estava vivo. Sylvia Plath só foi reconhecida após seu suicídio. Isso
não te assusta? A capitalização da morte. Somos parte de uma gama de pessoas
que são atraídas pela erotização da morte da mesma forma que somos atraídos por
perfumes— seguimos seus rastros que nem bicho.
Recentemente me apaixonei pelas escritas da Unica
Zürn. Uma escritora, desenhista, e uma surrealista ávida. Também conhecida por seu
amor mais que trágico com Hans Bellmer, o mesmo que assistiu seu suicídio ser performado
na frente de seu corpo imóvel. Seu trabalho, hoje em dia é pouco comentado— mas
seus relatos surrealistas literários/artísticos serão sempre observados com
cautela pelos que lembram de seu nome. Suas obras contam muito sobre o erótico
e sobra suas questões com a esquizofrenia— ela achou um ninho dentro do
surrealismo. Um lugar onde ser e rastejar naquilo que ela era não seria malvisto.
Suas palavras são apaixonadas pela violência e seus desenhos imploram por olhos
sensíveis— ela é provavelmente a figura mais intrigante do movimento
surrealista. Após a guerra, e pós um breve romance ela conheceu Hans e se mudou
com ele para Paris— ela era sua musa, seu manequim e sua companheira— ele era o
grande amor de sua vida.
Em Primavera sombria ela escreve repetidas
vezes como esta menina irá certamente morrer de amor, e que todos irão saber.
Este livro foi publicado três anos após sua morte, então nunca poderemos saber,
mas, a energia fantasmagórica paira sobre o livro— a personagem e ela morrem da
mesma forma. Talvez essa tenha sido a sua grande despedida— o quão mórbido é
isso? Mais do que o suficiente para entender as camadas de realidade que ela
despiu entre as curtas oitenta e duas páginas. Ela relata mais do que sua marca
registrada surrealista/ melancólica/ erótica— ela relata a negligência que se
foi herdada e os caminhos qual ela lhe carregou. Afinal, nada nunca vai ser tão
insuportável do que a melancolia do crescer em condições rígidas e mais que reais.
Me pergunto como acabamos aqui. Como ela e Bellmer viraram figuras aclamadas e
recém esquecidas, empoeiradas e deixadas de lado. Como tantos artistas estão
destinados a passar por tanto. O que corre no nosso sangue que atrai a
desgraça? O que existe nos nossos olhos, nas nossas mãos e palavras? O que será
que ela estava pensando quando... você sabe. Ela andava internada, nos últimos
anos de sua vida— e você sabe bem como isso funciona. Como as regras são. Eles
a permitiram ir para casa (temporariamente), e ela nunca mais voltou. O que é triste
é saber o quão difícil é falar de gênios miseráveis sem relatar tuas mortes.
Como pode a morte virar algo tão sombrio ao decorrer dos anos, não? Enfim,
enfim, enfim. Única Zürn foi mais que seu suicídio, ela foi uma artista brilhante.
E certamente a figura mais enigmática que posso pensar sobre.
Zürn não escrevia apenas com palavras. Ela
escorria. Delirava— anotava, com a ponta do traço, o que as mentes civilizadas
sempre tentaram calar: o real da dor, o feminino do inominável, o delírio que
não pede licença. Ela atravessou paris com os bolsos cheios de anagramas e
desenhos automáticos, enquanto o surrealismo a rodeava, ora em festa, ora em
pressão. é verdade que Hans Bellmer a impulsionou a criar, mas não se enganem: o
universo de Zürn não pertence a homem algum. Ela viu Max Ernst, Duchamp, Man
Ray. frequentou mesas com Joyce Mansour e Breton. mas sua obra era outra coisa.
um caderno incendiado. uma infância rearranjada. E, em 1957, reconheceu
num poeta o vulto do seu delírio infantil: Henri Michaux, o homem do jasmim. o
amor foi vertigem. a mescalina foi espelho partido. e dela jorrou não só
loucura, mas também arte. poesia desenhada, corpo em colapso e resistência
escrita. Em o homem do jasmim, publicado póstumo em 1971, é a própria Zürn
quem nos guia por corredores sem lógica: ela nos faz caminhar por dentro de sua
dissociação, de sua vertigem, do abandono. mas também nos oferece alguma
beleza. e muita coragem.
“Ich bin eine Frau, die sich zu Tode liebt.
(Sou uma mulher que se ama até a morte.)”
A loucura nunca lhe impediu de criar. Ela criava
em cima da loucura— entre internações, tentativas de apagamento. A escrita de Zürn
é indomável porque é real. Um testemunho nu e cru do que ninguém gosta de
encarar: que a mente pode ser um labirinto em combustão, mas dentro dele ainda
pode haver arte. Mas, em 1970, com 54 anos, ela se jogou da janela.
estava em liberdade provisória do hospital. Bellmer, doente, havia lhe dito que
não podia mais ser responsável por ela. Ela caiu. mas sua escrita não.
Porque Zürn não se leu com pena. e nós também não deveríamos. é preciso
lê-la com escuta, com risco, com o desconforto de quem encara a alma sem
filtro. Ela não escreveu sobre a dor. ela escreveu de dentro dela.
Por isso, sua voz ainda ecoa. em cada mulher que tenta transformar o caos em
linguagem. em cada artista que ousa escrever sem rede. em cada fragmento de
jasmim colado em um caderno, dentro de um quarto que ninguém ousou visitar até
o fim.
Ela ainda é vista como a companheira de Bellmer—
da mesma forma que tentam diminuir Plath a ex-mulher de Ted Hughes. Que
frustrante é assistir mentes brilhantes serem diminuídas aos seus homens. Um corpo
não equivale a uma mente— uma artista não é apagada no momento que vira ou “desvira”
algo. E a morte não deveria instigar vendas e compras de suas obras.
Ultimamente vemos os túmulos sendo revirados em busca de arte— nem mesmo nomes
como Joan Didion foram salvos da erotização da morte. Seus cadernos em branco
foram leiloados por fortunas e suas notas para seus terapeutas estão à venda na
livraria da esquina. Isso assusta qualquer atrista. Causa noites em claro. Ela
não era apenas uma fotografia nas exposições semelhantes a uma ode a
objetificação de Hans. Suas palavras e seus desenhos eram certamente maiores do
que suas fotografias sobre shibari.
Você deve estar se perguntando onde achei alguém
como Unica. Como este tipo de livro sobrevive a era da morte da arte feita pela
intensidade. Devo te dizer, sou muito grata por ter achado Zürn em uma pequena
banca em uma feira literária. Estava com quatro livros desta mesma editora nas
mãos quando o vendedor me contou sobre ela, e não pude evitar. Queria poder agradecer
ele. Pois eu estava simplesmente procurando material de pesquisa para o meu
segundo livro (o que realmente achei). Mas, voltei para casa abraçando uma nova
lenda minha. Uma mulher para admirar, sentir e ler. Uma surrealista, assim como
eu. Que raro encontrar qualquer coisa sobre este movimento tão maravilhoso hoje
em dia. Nestas últimas semanas tive a triste memória de ter vendido o meu
manifesto surrealista enquanto contava sobre minha paixão sobre ele a uma
pessoa mais que importante. Não tive a chance de fazê-lo se apaixonar por Zürn
da mesma forma que eu, e certamente não terei como— nossos sentimentos falam línguas
mortas totalmente opostas. E, de qualquer forma, seus olhos se espantariam e me
perguntariam o porquê todas as minhas escritoras favoritas tiveram finais tão
trágicos? E vou mencionar Nïn e Dakota Warren, mas não é o suficiente, pois aos
dezessete anos de idade escrevi um poema sobre o Rio Ouse, e tenho um retrato
de Virginia Woolf tatuado em cima de minha tatuagem para Sylvia Plath. Todas
elas terminaram da mesma forma. Woolf, Plath, Pizarnik, Zürn. Gênias afrente de
seu tempo que são resumidas aos homens e as mulheres que elas amaram— mas elas
são muito mais do que tudo isso. E Zürn foi mais do que um corpo amarrado por
cordas e exposto por Bellmer— ela sempre será uma artista, e suas palavras
correm por veias alheias.

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