NÃO PODEMOS FUGIR PARA SEMPRE

 

"o tempo não é linear."


𐙚˚ ༘❀⋆₊ ⊹❀𐙚˚ ༘❀⋆₊ ⊹❀𐙚˚ ༘❀⋆₊ ⊹❀𐙚˚ ༘❀⋆

16/5-

Nesta última segunda-feira te escrevi uma carta surpresa— você nunca pediu por nada disso, você provavelmente nunca teria cruzado o meu caminho— e essa semana me sentei na sala de estar e te escrevi sobre fugir. Como somos fugitivos de nós mesmos e como isso não faz sentido— eu amo aqui, eu amo as ruas dessa cidade e eu amo o caos dos estranhos se empurrando dentro de trens. Eu amo ir para a fazenda sempre que preciso de paz, e eu amo poder saber que eu posso fugir de casa e voltar para ela a qualquer momento. Não importa qual trem eu escolher tomar eu sempre volto aqui. E sempre encaro essas grades que me separam de casa. Eu sempre vou voltar para casa mesmo que esse não seja mais o meu lugar no mundo. Existe algo muito confortante em saber que as nossas palavras ascendem em nossos polos.

Nesses últimos dias fiquei em absoluto silêncio e escrevi mais de dez mil palavras entre dois projetos diferentes. Tomei café da manhã em segredo e te amei de forma explícita. Fiquei em silêncio e comprei duas coletâneas de poesia. Ando tendo problemas com o medo do fim— não quero terminar esse livro, não quero terminar de escrever esse capítulo, não quero te mandar a carta. Não quero. Não quero. Não quero saber o que existe depois disso. Comecei a escrever sobre o meu futuro pois quero tudo planejado. Continuo sentindo falta de momentos muito mínimos e tenho medo de que eles acabem. Não me faça parar de correr. Não me faça voltar para casa ainda—, eles trocaram a fechadura e eu não quero dormir no piso frio do corredor. Você não entenderia. Eu. Não. Quero. Parar. De. Fugir. De. Mim. Queria dormir para sempre. Dormi por dias e ficaria na cama por meses. Queria poder ficar debaixo das cobertas e esquecer do resto.

-




Não podemos correr para sempre. “A cidade é como um imã” — foram palavras que me dão tanto medo. E se for?! E se a vida inteira tenha sido idealizada pelos meus olhos? E SE A VIDA ESTIVER NOS ENGOLINDO POR COMPLETO SEM REMORSO? Não posso dormir para sempre, e amor eventualmente se desagua longe de nós. Não posso culpar as estações. EU PRECISO FUGIR DAQUI. E, eu fugi. Engoli o orgulho e voltei rastejando para minhas raízes. Estou tendo as piores das fazes na cidade— mal consigo abrir os olhos. Preciso de uma mãe, de um útero. Preciso de um título enfiado na minha goela. Eu sou. Eu sou. Eu sou.

Voltar para a fazenda sempre me faz esquecer sobre o choro que me pega desprevenida entre vagões de trem. Tudo que posso ver é a natureza inspirando e respirando de seu próprio ar. Toda vez que venho aqui penso que algo bom irá escorrer das feridas de Deus. A herança sangra dos dois lados, isso é algo que não se pode evitar— nem mesmo com o sono. Você não pode fugir de seu sangue para sempre. Olhe para o espelho, observe cada curva: Você sangra, se enrosca, estica e se revira. Sim, sim, você é carne e osso. Você é apenas outra criatura e você não pode escapar disso. Mas, você pode amar os cavalos selvagens que odeiam suas celas— podem galopar debaixo da estrela prestes a morrer. Você pode voltar para casa— se isso significar que não irá correr de si. Porque, você não pode correr para sempre. Membros mortais reagem de forma imprudente & eles quebram, e eles passam fome. Você não entende, né? Você precisa voltar! Neste mesmo instante, ou no fim. Precisamos olhar para as nossas mãos e admitir que elas sangram. Que os caminhos desenhados pelo destino estão cegos pela ira da natureza. Esconda seu corpo debaixo das cobertas, não importa... os cantos do outro lado da porta irão te acordar. E a comida sempre estará pronta. “Casa” é uma ferida de Deus prestes a cicatrizar— carne e pele voltam para si mesmo a todo o momento. Eu queria/ eu desejo poder lavar todo esse desejo inacabável de fugir da minha pele. Eu desejo muitas coisas que não posso ter. Mas, ah, eu posso sonhar. E sonho frequentemente sobre tudo. Sobre uma família, sobre paz, sobre amor, sobre carne. Estou sempre sonhando— quase nunca com os olhos abertos. Quando meu corpo se descasca do casulo que teci com cobertores e plumas, eu rastejo até as mesmas cafeterias, as mesmas esquinas. Escrevo meus livros sobre eles. Eu faço amor ebulir de tudo isso.


A cidade não pode me engolir por completo como o oceano— até porque, a cidade é obra do homem & o oceano é aquilo que acolhe minha alma. Quando as ondas chegam na ponta da língua, sei que algo em mim está prestes a morrer. Essa mesma coisa dentro de mim precisa fazer as malas e rastejar até o que não pode ficar. Mas, no final, não posso correr para sempre. A cidade é minha mãe e esta fazenda é meu legado dando seus últimos suspiros de glória— a ferida de Deus—, irá cuspir e engolir meus ossos até eu virar algo próprio. Uma faca de um gume só. Irá me carregar até mares desconhecidos e me arrancará de lá. Me faz correr com os cavalos indomados e me faz sangrar. A estrela prestes a morrer— o Sol em toda a sua glória, irá se desfazer entre as ondas quebradiças e nos ferver por completo. Somos feitos dos feitiços ebulientes de amor, afinal. Nós somos. Nós somos. Nós somos. Devemos olhar para o Sol e admitir nossas mãos cheias de sangue quente. Devemos virar um só com nossas almas novamente— olhe para o espelho, admita do que você é feito. Todos os nomes debaixo do seu— Você não pode escapar para sempre. Você é algo que se morfa dentro de seus próprios ossos. Jamais poderemos escapar de casa. E “casa” não é equivalente a quatro paredes e um teto. “Casa”, é feita de carne e osso— não podemos dormir para sempre. Nós devemos sair da cama, fitar o Sol (que, não irá morrer tão cedo assim!), e devemos manter nossos olhos na linha do horizonte. Vá na paz de seus próprios passos, mas sempre se lembre das chaves de casa que guarda entre suas costelas. Você não pode correr de si para sempre. Devemos seguir as vozes que nos chamam para a natureza— beijar a ferida sagrada— chame de amor, chame de dor, chame de crescer. Mas você tem que admitir o que é. E aquilo não irá conseguir te engolir de novo.


Preciso escrever outro poema– o sinto na garganta. Não como bile, mas como um amor pós beijo. Preciso escrever algo. Está na hora de fazer as malas e ir para casa. Não posso fugir para sempre. Preciso ir para casa— não posso correr para sempre. Preciso acordar, respirar a vida— dentro e fora de meus pulmões. Preciso voltar para a cidade, não posso fugir para sempre. Precisamos voltar para nós mesmos. Você não pode fugir para sempre.

Comentários

Postagens mais visitadas